Na planície central do Estado do Amazonas,os índios Barés formavam um dos grupos Tupis; os
mais civilizados que habitavam as margens do Rio Branco. Eram amantes da guerra e da
navegação e tinham como chefe o cacique, escolhido entre os que mais se haviam distinguidos
em guerras passadas.
O Velho chefe daquela tribo contava com numerosa prole. Nenhuma do sexo feminino, porém,
havia nascido até então e o casal de índios não se conformava com a ausência de um rebento
que representasse a graça e a beleza – estrela solitária no paraíso das selvas. E as preces,
suplicando uma filha eram freqüentemente dirigidas a Coaraci – o Sol – pai dos viventes,
Entidade Soberana, para receber e atender aos Barés, segundo a sua concepção.
Sucediam-se as promessas e se repetiam as orações. O cacique prometera que se os seus desejos
fossem satisfeitos – receber dos céus a dádiva de uma filha – ela cobriria o seu corpo,
unicamente, com penas brancas e o desvelo paternal jamais faltaria àquela que seria todo o
encanto daquele habitat distante do mundo, que recebia os primeiros clarões da civilização
ocidental. E como Deus não falha a quem para Ele apela com fé e sinceridade de propósitos, o
governador da tribo instalada nas barrancas do Rio Branco viu atendidos os seus fervidos
apelos.
4 de Março de 1724.... Manhã clara, embebida de luz...
Céu tropical, matizado de estrelas opacas, esquecidas da noite que passara, cedendo lugar
ao sol que começava a derramar sobre o sítio dos Barés o seu jorro de luz, despertando
para um novo dia aquela pequena população dos primitivos habitantes das nossas
selvas.
O orbe terráqueo recebia o presente do Supremo e Bondoso Pai e o pequenino mundo dos
índios se fez em festa com a chegada daquela criança, ansiosamente esperada, que acabava
de transpor o pórtico luminoso da vida espiritual para a viagem de retorno, novo
circuito que cada vida descreve nas etapas evolutivas da natureza.
A atmosfera límpida daquela manhã cheia de eflúvios, e cortada apenas pelo vento nas
ramagens distantes, arrebatava o povoado,envolvendo-o em um encanto irresistível,
despertando os Barés para o concerto dos seres e das coisas que dominam a Natureza,
ainda impregnada dos aromas penetrantes da madrugada que há pouco se despedira. Em
breve, a notícia do nascimento da nativa se espalhou em toda a aldeia. Uma alegria
íntima contagiou aquela gente que, embora rude, sabe amar e sentir o transporte
fraternal que lhe transborda os corações.
Iniciou-se, dentro em pouco, o desfile de estilo ante o pequenino ser que acabara de
ingressar entre os valentes Barés do longínquo Amazonas... Preces votivas, danças,
rituais e outros atrativos não faltavam, em sinal de reconhecimento e alegria. Vozes
unidas, comoventes, vibrantes, compunham o hino de adoração que vinha de chegar à sua
morada comum. O velho cacique não se continha no seu contentamento ante a concretização
de um sonho longamente sonhado! Uma flor, que se abria para as carícias do sol, ali se
encontrava,numa afirmativa da dádiva do céu! Uma filha!
Pedindo silêncio por alguns instantes, enquanto orasse a sua prece de reconhecimento que
transbordava de seu coração paternal, o chefe da tribo prosternou-se na relva verde.
Serenidade inalterável envolvia aquela assembléia de selvagens alheios aos preconceitos
e longe das rotinas sociais, em que só a alma se expandia livremente, estereotipando no
grande livro vivo da Natureza o íntimo e doce registro do pequenino ente que acabava de
ingressar na comunidade dos Barés.
O nome escolhido para a recém-nascida foi objeto de cuidadosa meditação. Os índios têm
particular predileção pelas armas e daí ter recaído na pequena emissária de Jesus o nome
de ZARABATANA (Esgaravatana), arma preferida pelos guerreiros Barés e a que mais impunha
temor aos inimigos. O velho cacique, no seu comovedor carinho paternal, quis assim
acobertar a filha querida, dando-lhe como sua sentinela, a temível trincheira do nome.
Cuidados paternais, sob o manto protetor da superstição,característica principal dos
nossos mui queridos antepassados.
* * *
Zarabatana foi criada numa rede branca e, conforme a promessa dos seus pais, a sua
indumentária era da mesma cor, como a simbolizar a paz entre os Barés. Em meio de
verdadeira adoração crescia a menina, cujos desejos eram sempre satisfeitos e ninguém
daquele pequenino mundo negava-lhe carinho, nos transportes de amor. Cada índio Baré
formava um anel da grande cadeia da solidariedade universal.
Zarabatana, embora cercada de mimos, cuidados, carinhos e respeito, era humilde e a todos
correspondia com igual afeto, dedicando-se em particular ao seu velho pai, que lhe
votava extrema amizade e especial zelo. Apesar se sua idade, Zarabatana ia ao encontro
de qualquer um que necessitasse de auxílio e conforto espiritual. Ele sabia orar ao Pai
Divino. A sua alma pura comungava com os esplendores da Criação infinita.
Zarabatana foi, assim, crescendo, mostrando cada vez mais os seus sentimentos afetivos
por aquele punhado de irmãos que compunha o mundo dos Barés, onde vira a luz do dia e
aprendera a amar os seus semelhantes – aspiração ardente do ser humano evoluído. A
pequena índia amazonense sabia que a alma só pode progredir na vida coletiva,
trabalhando em benefício de todos.
Entre os jovens da tribo, destacara-se pela assídua convivência com a filha do cacique.
Era o companheiro contemporâneo a quem Zarabatana dedicava amor fraternal, pois o tinha
como irmão, jamais sentindo outro sentimento pelo moço, que no entanto, crescera
aninhado no coração esperanças que se renovavam ao contato constante com a eleita dos
seus sonhos de 15 anos!
O moço Baré se habituara a contemplar sua querida Zara, contendo no silêncio do seu
grande afeto, a linguagem divina do amor. Queria confessar-lhe o que lhe ia n’alma;
precisava dizer à sua eleita todo o afeto que sentia, exultante, transbordante,
crepitante, insistir a brotar-lhe do coração loucamente apaixonado. Não encontrava
palavras com que traduzir à sua amada o fogo que lhe incendiava por dentro, intimamente,
da incontida paixão que nascera por si. Um grande abismo se abria ao adolescente
companheiro de Zarabatana. Ele não podia compreender outro amor que não fosse a
expressão daquele que excitava as fibras sensíveis da matéria. Não podia compreender que
laço de afeto esquisito poderia liga-lo à companheira de infância, sem a realização do
supremo sonho da união de seus corpos.
* * *
A tribo do Rio Branco, preparou a sua taba para uma grande festividade, pois de há muito
ali não festejava outro acontecimento, depois do nascimento daquela criatura cheia de
bondade e virtudes que se tornara a estrela tutelar dos Barés. A primeira festa do
cacique oferecia em louvor a sua querida filha, e ela bem merecia um dia de maior
alegria na sua vida. Há quanto tempo a jovem filha do guerreiro Baré aguardava aquele
momento adorável que lhe permitisse conhecer outros moços de outras tribos que por certo
não faltariam ao convite que estava sendo transmitido.
Zarabatana sentia, como era normal, sede de afeto de um coração ainda não conhecido e que
palpitava em todos os mortais. Lei da vida que enche de desejos bastante fortes a alma
que desperta na emoção de um primeiro olhar, que é sempre a sublime esperança do
porvir.
A filha do cacique tinha o coração de tal modo repleto de sensações, que tudo fazia por
abri-lo a quem compreendesse...
Estava a bela descendente dos tupis no prefácio de uma nova batalha – a batalha do amor,
doce mistério da vida – sutil perfume das almas, poderoso magnetismo que provoca a
atração entre si, criatura humanas. Suprema lição já havia aprendido a moça Baré, na
linguagem muda do seu companheiro de território, que despertou sua alma para o grande
enigma – o amor! Zarabatana precisava, pois viver seu poema de vida e amor...
Chegou, afinal, o dia festivo para o habitah dos Barés. Várias comitivas de tribos
vizinhas compareceram, trazendo seus pelotões de guerreiros, com seus chefes ostentando
elegantes e vistosas indumentárias que se destacavam entre si.
O povoado se encheu e aquele recanto do Baixo Amazonas começou a viver seus momentos de
grande alegria.
Verdadeira confraternização processou-se naquele momento de intensa vibração, nascendo
entre os silvícolas uma nova concepção de amizade, que se nutre desse intercâmbio, que
leva a alma à contemplação das coisas eternas e aos sonhos divinos.
Dentre os convivas, foi notada a presença de um cacique que se fazia acompanhar de um
índio sereno, jovem de compleição atlética, tipo impressionante, com seus enfeites
imponentes e que irradiava simpatia e respeito e que havia atingido a idade verdor, sob
o olhar vigilante do seu pai, o pajé da tribo vizinha, ocupante da várzea do Rio Negro,
também no Estado do Amazonas.
A personalidade do moço visitante não deixou de despertar a atenção de todos, notadamente
da filha do cacique Baré, que viu desde logo se abrir para si aquele céu de
deslumbramento que seu coração de moça desenhava no quadro imenso da sua imaginação.
Ao fitá-lo pela primeira vez, Zarabatana sentiu algo então desconhecido, que lhe fez
pulsar aceleradamente o coração, e sensação estranha lhe perturbou quando o cacique
aproximou-se para apresentar-lhe o filho do Chefe religioso da tribo vizinha que se
havia transportado àquelas paragens com o intuito de conhecer a decantada soberana dos
Barés.
Corumbá era o nome do jovem índio, que com um gesto delicado e em estilo próprio
curvou-se ante a linda flor selvagem, que o fitava encantada, olhos nos olhos, presos de
suave enleio, e assim transportaram-se para o mundo desconhecido que pisavam naquele
instante supremo para nada mais verem ao seu redor, envoltos numa onda de cariciosos
sonhos. Eram almas gêmeas que se encontravam depois de percorrer velhas estradas em
busca uma da outra; e o amor nasceu espontâneo e sincero.
Findas as festividades, Zarabatana e Corumbá sentiam que nada mais os poderia separar. No
momento angustioso da despedida, o valoroso guerreiro prometera voltar para realizar,
então, o sonho magnífico de ambos e, com infinita mágoa, Zarabatana viu partir a
criatura querida, inspiração dos seus mais lindos e inocentes sonhos de moça.
Sozinha, presa de uma imensa saudade, esperava Zarabatana a volta feliz do seu amado
Corumbá; porém o tempo rolava moroso, indiferente à sua dor e nenhuma notícia chegava
para que a felicidade lhe voltasse a sorrir. O riso morria-lhe nos lábios e os seus
olhos, outrora morada da alegria, eram agora tristes e inexpressivos... - Será que ele,
o seu guerreiro valente, conquistador de três penas vermelhas por atos de bravura, já
não a amava e esquecera a solene promessa?
Mas uma deliciosa surpresa estava reservada àquela alma pura e boa...
No dia 04 de Março de 1740, data em que completava as suas 16 primaveras, o Pajé, pai de
Corumbá, ciente da amizade do seu filho pela encantadora Baré, volta com ele ao seio da
tribo amiga para um pedido de casamento ao qual, por sua vez, o pai de Zarabatana que de
há muito tempo adivinhara o estado d’alma de sua dileta e querida filha, aquiesceu com
alegria; e noivado se tornou público em meio de um regozijo geral.
Zarabatana era então a mais feliz das criaturas e, como a felicidade é egoísta, não
percebeu alguém que vivia ao seu lado, em muda contemplação, torna-se presa de infinita
e indizível angústia: era o Baré, seu companheiro de infância que a amava cegamente,
aguardando o momento desejado de declarar o amor que agora se tornara impossível.
Atingido por golpe tão profundo, a desolada criatura recolheu-se em si mesma, tomada de
um ódio nascente e mau. E mil pensamentos cruéis fizeram morada comum no seu coração em
fogo...
Longe de imaginar semelhante tragédia íntima, Zarabatana, descuidada e feliz por aquela
tarde amena e linda, saiu em amoroso aconchego pelo braço do seu noivo bem-amado,
percorrendo as campinas verdes de sua pequena terra. Num recanto convidativo e sereno,
onde mil pássaros pareciam entoar a música divina dos corações amantes, ambos pararam e,
mais com os olhos do que mesmo com palavras, trocaram as mais ternas juras de um amor
nunca sentido. Lá, na vastidão infinita dos céus, os raios oblíquos do sol despediam-se
da terra, iluminando os recantos solitários das folhagens...
Deitava-se o sol sobre o cimo das montanhas pacíficas que contornavam a taba dos Barés...
Doce paz reinava na natureza envolta pelas primeiras sombras da noite que vagarosamente
caía sobre a terra. Embebido de sonhos, o jovem par não percebeu entre o farfalhar das
folhas a presença de alguém que os espreitava, ferido pelo ciúme, arquitetando seu plano
de vingança.
E, no instante divino em que suas mãos se uniam em amorável enlace, uma flecha partiu da
esgaravatana cortando o espaço, indo cravar-se certeira e fatal – no peito varonil do
guerreiro Corumbá. Um grito alucinante de dor ecoou pela mata, naquela hora magnífica do
poente: era Zarabatana que, incrédula e apavorada, tinha diante de si o corpo possante,
inanimado, do seu índio querido!
Desvairada, olhos dilatados pelo pavor, mal teve tempo de estreitá-lo junto ao nobre e
enlutado coração, balbuciando frases desconexas, porque a segunda seta, certeira
atingia-lhe também mortalmente. Num último arranco de vida, compreendeu ainda que iria
para o mundo dos Espíritos, seguindo Corumbá, na trajetória iniciada há alguns segundos,
tão unida ao doce companheiro como imaginara viver pelos anos afora, na jornada
terrestre.
Cessara a existência física da mais linda flor daquelas matas selvagens e com ela haviam
de cessar, também, os cânticos maviosos daquela tarde linda que findava... Ambos
retornaram à pátria comum – ao Plano Espiritual – alçando o magnífico vôo à
eternidade!
Alucinado, a debater-se num mar pesado de sombras e como que desperto de um pesadelo
louco, o mísero Baré, diante do seu crime ignóbil, ante os despojos de suas inocentes
vítimas, num último lance de desespero, antecede-se à justiça, ingerindo, de um fôlego,
o líquido venenoso e mortal de uma infusão de folhas agrestes. E ali mesmo, a poucos
passos de suas pobres vítimas, deixou de pulsar seu desvairado coração que não soube
compreender os desígnios de Deus.
Estava escrito o último capítulo da tragédia, cuja brutalidade, apesar dos anos
decorridos, sacode os nossos espíritos.
* * *
A tragédia que vinha de ser consumada, abalou profundamente a paz alicerçada entre as
tribos vizinhas; uma tristeza indescritível se fez hóspede nos corações daqueles
silvícolas que jamais pensaram no epílogo sangrento daquele por de sol. A morte que
arrebatara o corpo físico de Zarabatana, quando o seu coração navegava no sereno lago
das mais acalentadoras esperanças, sepultou o ninho doméstico em que viviam pais e
irmãos na tribo. Profunda tristeza estabelecera-se em todos quantos desde a radiosa
manhã do nascimento da indiazinha, desaparecida tão tragicamente e na plenitude da sua
mocidade, se habituaram com a sua meiga e inocente companhia, o que fazia de Zarabatana
o alvo das mais afetivas esperanças.
E ao crepúsculo daquele dia tão cheio de surpresas angustiantes, de emoções insopitáveis
e de lágrimas abundantes, o chefe da tribo – o valoroso cacique pai de Zarabatana –
voltou-se para o Alto clamando por Coaraci, mãos postas em súplica sincera, orando pedia
que lhe fosse amparado o coração desalentado e aliviada a sua alma aflita,
restaurando-lhe as forças físicas. E pela face enrugada, simpática e austera do velho
guerreiro, chefe dos Barés, cascateavam lágrimas, enquanto seus olhos imobilizados
devassavam a imensidão dos céus, como se estivesse à procura de alguém que para lá
partira havia pouco.
O cacique permaneceu por muito tempo nessa atitude contemplativa, na mudez da sua imensa
dor, imóvel, silencioso, entregando ao Senhor dos Mundos, em seu seio misericordioso,
aquela que lhe havia sido confiada numa manhã radiosa, cheia de luz e alegria!
Profundo foi o silêncio vivido naqueles longos e cruciantes minutos, quando se
estabeleceu a permuta de preces de Paz à alma de sua filha muito querida, que
desastrosamente o deixara, como se fora um sonho a sua passagem pela Terra...
* * *
Deixemos as margens do Rio Branco, sob a sua atmosfera de tristeza e de corações
enlutados.
* * *
Todos sabemos que a alma é imortal e com essa certeza vamos encontrar, abrigadas sobre o
manto protetor do nosso Mestre único, aquelas almas gêmeas que se uniram na radiosa
eternidade, para o trabalho de renovação, no santificante cumprimento das leis de Deus,
para as mais divinas conquistas do Espírito.
* * *
São decorridos 206 anos da trágica ocorrência que fez os dois enamorados mergulharem nas
sombras do sepulcro. Ambos já voltaram à Terra. Neste plano de edificação espiritual,
foram irmãos carnais que se amaram muito e viveram até idade avançada. Cumpriram suas
missões. Resgataram suas faltas. No novo regresso ao Grande Além, iniciaram a jornada do
progresso espiritual, recebendo do Sublime e Querido Mestre, a incumbência de acalentar
as esperanças dos vivos de boa vontade.
Zarabatana, entidade angélica, está encarregada de chefiar uma falange de trabalhadores
do espaço, destacados pelo Sublime Benfeitor da Humanidade, para dirigir os destinos
desta Casa, que será em breve transformada em um lar de caridade, onde se abriguem
crianças órfãs – almas aflitas – Espíritos em princípio de uma nova jornada...
A prova por que passaram Zarabatana e Corumbá foi uma experiência proveitosa que os
compeliu a outras vidas, mais dedicados e repletos de esperança divina.
Os corações que se uniram na hora crepuscular do grande sono estão, ainda hoje, vencidos
os séculos, entoando aquele cântico divino das almas que lançam o vôo decisivo em busca
de Deus, o grande foco de Amor que atrai todas as criaturas!